Finalização do artigo supra citado publicado nos finais do século XIX no semanário "Educação Nacional":
"O que convém mais frizar aqui é que o professor primário é essencialmente estudioso. As sciencias interessam-no e todos os grandes aspectos da civilização attrahem o seu espírito. É um homem verdadeiramente moderno, pela cultura e pela orientação. E vivendo assim, de honorários tão parcos, custará acreditar que este trabalhador prestimoso compre livros e assigne jornaes, vendo.se-lhe em casa uma modesta estante bem fornecida, com trabalhos didieticos sólidos, com produtos sublimes de alta literatura. Como todos os que vão para a frente, para a luz, o professor primário procura o estímulo da idea, o lenitivo do bello. Chrisalidas de onde hão-de sahir depuradas todas as almas, fortes no summo bem, na plena justiça.
Trabalhador, não há no país funccionário mais diligente, mais escravizado ao dever. Ninguém sabe quanto é rude, quantas vezes escuramente desconsoladora, essa tarefa larga do ensino de creanças, senão a creatura que a exerce. Mas activo e resignado, como preceitua a melhor filosofia, é assim que o professor primário vae com a luz da sua alma alumiando muitas almas, com a sua vontade preparando outras vontades, com o seu amor aliciando corações, e sempre à sua fá robusta attrahindo novos crentes. Porque o seu zelo não se exerce só no penoso trabalho que lhe cabe. Faz sua a grande causa da instrução do povo, e por todos os modos a serve e por todos os seus aspectos fortalece. Escolas há que não teriam frequência sem a sua tenacidade de propaganda. Emfim, está bem no domínio da verdade a afirmativa de que todo o moderno processo da escola popular, de Portugal se fala somente, compreende-se, deve-se ao professor primário principalmente.
Está-se bem longe, pois, do mestre-escola, de desopinante tradicção. Porque há excepções desairosas, não se leia queo professor primário em Portugal está ainda afastado dos traços que ahi ficam mal debuxados. Na sua maioria, esses que abrem ao povo o caminho melhor da vida, são o que revelam essas palavras pobres mas justas. Maravilha, não é verdade, tanta dedicação e tanto zelo, tanta coragem?! E quem há-de regenerar Portugal há-de ser o professor primário; elle é quem há-de restituir à nossa velha nação o seu bom nome de outrora, esse nome fulgente por todo o largo mundo conquistado por feitos famosos de vantagens para a civilização. Que o modesto servidor da escola popular cada vez melhor preencherá, principalmente impelido dessa sua devoção própria tão relevante e tão nobre, a missão levantada a que foi chamado, e que é com preito a de fazer entrar o seu país no caminho do progresso justo e extensamente libertador."
É sabido que no tempo dos nossos pais o analfabetismo era grande sobretudo nos meios rurais. Era então considerada uma trilogia de gente do saber nomeadamente o padre, médico e o professor que eram respeitados pela população. Já por aqui abordei esta temática. Mas no passado nem sempre assim foi.
Vou hoje aqui transcrever parte de um interessante artigo, título em epígrafe, que veio publicado no semanário “Educação Nacional” nos finais do século XIX, onde o autor, Cesário Tavares, retrata como a sociedade da época, via o sector mais letrado com desprezo, nomeadamente o mestre-escola e professor primário.
“Litteratos e jornalistas ainda a miúdo empregam em seus escriptos a expressão mestre escola para designarem o modesto funccionário que gasta a vida na tarefa ingrata da primeira instrucção, e que dá um forte exemplo de sublime coragem no trabalho, de abnegação e de civismo. Nada havia que dizer a tal forma de referência, se ella não envolvesse certo menosprezo da parte dos que a empregam pelos obscuros trabalhadores da escola popular, os pacientes, os resignados pioneiros da melhor civilização, a que levanterá um mundo novo, erguido nas bases inabaláveis duma ordem social justa, a derivar-se da noção poderosa do dever que há-de existir em todas as almas. Até a entidade professor primário, mestre-escola, no citado dizer expressivo, serve ainda às vezes a romancistas, contistas, escriptores de teatro, jornalistas e gazetilheiros, ou de typo irrisório de caricatura grotesca, ou de inspiração de prosas trocistas, de versos hilariantes. Assim nisto se nivelam muitos trabalhadores do pensamento, ou às vezes taes, com a baixa canalha que nas sociedades ainda vegeta, sem creação e sem lettras, sem outra lei que a da necessidade, sem outro respeito que o da força da autoridade constituída, rebelde à civilização, invejosa do justo bem que os dignos desfructam, e na qual o professor primário ainda suscita certa mofa, algo de revoltante grosseria. Restos da tradição do mestre-escola ignaro, sem saber e sem caracter, a lembrar na aversão geral com que o tratavam, nas vaias, nos apupos com que era sempre saudado da gente grosseira, sem ideaes, aquelle desprezível escravo que os spartanos embriagavam para servir de asco aos que deviam ser os futuros cidadãos da republica valorosa.
Na verdade o mestre-escola era uma creatura limitada, sem boas noções profissionais, cheio de baixezas e servilismos, quasi mendigo, quasi palhaço, com vivos traços de charlatão, um todo de ser nauseante e profundamente lastimável. Entretanto quantos deles, talvez, não possuíram almas superiores, de excepção, com altas e legítimas ambições, e aos quaes a sorte afligiu com requintes de tortura nessa posição deprimente, a imaginação a mostrar-lhes distante, mallogrado, nas horas de mais funda melancolia, um destino sonhado de venturas e de bem merecidas glórias. Fado talvez! Doloroso a semelhar a lenta agonia pavorosa dum inocente para toda a vida sepultado no fundo dum carcere, e que, se compraz em ver à noite no céu, pela fresta da prisão, a luz de certa estrella, em que o triste symboliza a alegria que perdeu, as boas esperanças que o animavam, porventuras as seduções dum lar tranquillo, ridente e feliz.
É preciso, porém, dizer-se que o escarneo das multidões pelo mestre escola não provinha da triste individualidade que elle definia no meio social. Tinham um mais fundo determinismo as zombarias cruéis de que era alvo continuo o triste educador. Fosse elle, afinal, como fosse, o desgraçado era um inconsciente servidor da civilização, a idea tinha já nele um apóstolo, ainda que sem eloquência nem enthusiasmo. Ora é um facto provado que as profissões de maior elevação numa sociedade de verdadeiros homens eram as reputadas mais ínfimas nos seculos de ignorância quasi geral, já do domínio da historia. Professores, médicos, até escriptores, estavam num plano muito baixo da escola social. Eram todos homens que tinham por missão augusta levar para deante o mundo, para o bem, para a beleza, para a justiça, para a verdade. Que haviam de arrancar a espécie à bestialidade nativa, sufocar o egoísmo pessoal, insufflar nas almas todas o alto principio do maior dever, o dever do progresso moral, da conquista duma fecundante liberdade, duma vida digna.”