Pela ruralidade - CLVI(Picos de manhã submersa)
O dia D estava prestes a chegar. A miudagem, a que lhe deram o nome de seminaristas, estava ansiosa por chegar às suas terras, ver os familiares, os amigos da escola primária. E também ver as cabras, ovelhas, o cevado, os láparos com criação de caçapos em barda, vacas a lavrar, os carros de mato numa chiadeira infernal, as cantadoiras bem apertadas com os pescazes a roçar em seco no eixo de lódão, (os lavradores gostavam de ouvir e de fazerem ouvir esta chinfrineira, propositadamente não lambuzavam os eixos com sebo), os almargeais, a achamboaria, enfim todas aquelas coisas que eram familiares aos mocinhos do meio rural. Eram as férias grandes que estavam à espreita.
Então na óptica do corpo docente do seminário, reitor, prefeitos, director espiritual, era a altura de preparar os enclausurados para os hipotéticos males do mundo que poderiam encontrar nas suas terras de origem. Essa tarefa cabia normalmente ao director espiritual, bem escanhoado, de sotaina, cabeção e prima tonsura bem desenhada. Num pequeno anfiteatro repleto de juvenis ouvintes, desenvolvia os conselhos, que entendia ele, seriam os mais cristãos. Para que nas suas terras não descambassem tinham ali os seminaristas os alertas dum conselheiro, não fosse alguma valdevina num trocar de olhares fazer descarrilhar o noviço . A plateia ouvia atentamente com a disciplina incutida durante o ano lectivo. Uma ou outra dúvida era esclarecida pelo palestrante, não se coibindo este de abordar os perigos que até a televisão poderia ter. Note-se que este meio audiovisual tinha aparecido há pouco tempo, estávamos nos finais da década de cinquenta do século passado. E chegados aqui há um dos mais desenvoltos que pede licença, levanta-se e pergunta:
-Senhor padre, na minha terra há uma televisão no centro paroquial, posso ver? A resposta, andando sempre à roda com os males do mundo, foi negativa. Mesmo nesse caso deves-te abster, disse o conselheiro.
E agora à distância podemos especular, o que é que a televisão a preto e branco, claro, teria de inconveniente para um seminarista não poder ver! Será que as pivots jornalistas do telejornal já não usariam saia até à barriga da perna, ficaria só pelo joelho e travada com racha atrás?!.... E será que os decotes iam além do manúbrio? E meia calça cor de mel, já não digo preta? E lantejoulas na blusa a darem no olho? E aquele charme apelativo ao ouvinte? Coisas para as quais o seminarista se devia abster de olhares langorosos, para não cair em tentações.
Bem, vamos agora finalmente especular no superlativo. Se o director espiritual naquela altura previsse as cenas quase de sexo ao vivo que actualmente um dos canais generalistas exploram ao serão, dar-lhe-ia uma síncope fatal se não optasse por clausura total longe de qualquer meio de comunicação social.
Além da lavagem ao cérebro atrás referida pelo director espiritual era levada por cada seminarista uma minuta com vários itens para ser entregue e consequentemente anotada pelos párocos das terras dos jovens. Aí se questionava em suma se o seminarista nesse período de férias cumpria com os seus deveres religiosos. Seria depois devolvida ao reitor do seminário. O autor destas linhas, ao tempo, lá ia ter com o abade da terra para avaliar a sua conduta. Era amigo íntimo, o cura, da fogosa trintona a rasar os quarenta, que tinha feito figas ao sacramento do matrimónio, não era seresma muito menos maninha entenda-se, roliça sim e a dar no olho, de porte gostoso, Miquinhas mamuda (não que fosse amojuda se bem que também não era tábua rasa. Era apelido que tinha herdado da progenitora, essa sim abonada em dotes carnais frontais). Era aquilo que se pode dizer mulher bem feita, nos olhares fuzilantes de alguns campónios urbanizados, atiradiços. Não passava despercebida a muitos paroquianos malandrecos quanto mais ao abade quarentão que se enfurecia de ciumeiras, donde talvez o fatacaz que tinha por ela?!... Mulher da Igreja, tinha sempre o altar florido num brinquinho e então o nicho de Santo António casamenteiro, com dois castiçais reluzentes, sempre florido em boa frescura ora com dálias, ora com cravos brancos. Os paramentos nos gavetões do móvel corrediço de castanho velho na sacristia, bem espelhados, ela fazia questão do abade na santa missa dominical e nos lausperene estar bem afiambrado. Mas era sobretudo nas missas solenes com a presença do bispo, cónego e arcipreste e o coro a cantar o Agnus Dei e o Te Deum que o pároco, vaidoso como era, gostava de se apresentar nos trinques. Durante a semana, era um ver se te avias, um engrolador de missas. Dizia-se na paróquia e redondezas que o padre tinha mandado às malvas os votos de castidade professados quando tinha sido ordenado, no entanto dava conselhos aos paroquianos, que se ajoelhavam no confessionário, persignando-se, para não lambiscarem fora do arco matrimonial. Segundo as más-línguas falava-se em mancebia (eu nunca vi nada mas havia quem espreitasse pelo buraco da fechadura), poderiam ser ou não deslises clericais em piso tão escorregadio, transversais no tempo que já Aquilino, Eça, Camilo e outros esgravataram. Diz-se que lautas jantaradas e boas camas não eram enjeitadas por franjas clericais. Mas isso não eram contas do meu rosário, só me interessava que o abade não desse deste seminarista más informações para o seminário.
(antonio)