Histórias de lana-caprina
Já por aqui referi as minhas ligações umbilicais aos saberes, usos e costumes das regiões rurais. Foi neste sentido que comecei a ler as obras de Aquilino Ribeiro, autor que retrata sobretudo a Beira Alta, mas não só.
Descobri também agora outro autor consagrado, médico de profissão, de vetusta idade – Bento da Cruz. Tal como o autor acima referido, retrata as raízes rurais, neste caso do Barroso, com uma autenticidade que nos deixa embevecidos. O padre, o médico e o professor(a) eram três pilares das pobres terras do interior do país. O livro que acabei de ler “histórias de lana-caprina” anda à volta daquelas figuras da “intelectualidade”.
Eu não ando atrás de alçapões dos homens de cabeção e prima tonsura, as coisas aparecem-me de mão beijada a que não posso chutar para canto. Veja-se o que escreve Bento da Cruz no enredo das histórias sobre um desses homens de Deus, um agiota, integrando o sentir do povo daquela região.
“O padre Moura, mais conhecido por padre Mula, formigão em plena maturidade, infatigável batedor de perdizes e lebres, barba de oito dias, grenha preta com filamentos brancos nas fontes e raleiras marginais à tonsura, uma verruga de sete cotovelos na ponta do nariz abatatado, faces e barbadelas lustrosas de sangue bem nutrido, voz tonitroante, que adquiria tons confidenciais quando, entre copos e amigos, se vangloriava de ter vindo para ali com a barriga a dar horas e as calças a pedir fundilhos e, agora, estar rico e farto como um porco.
- Isto é que este Mula é um usurário… Traz dinheiro emprestado aos pobres a vinte e a trinta por cento ao ano…
… Isso, por dinheiro, é capaz de vender a alma ao príncipe das trevas. Pelas leis da Igreja, os padres só podem rezar uma missa por dia. Pois o Mula, se lhas pagarem, aceita vinte e trinta por intenção de para o mesmo dia.
… E as baboseiras que essa besta diz do altar para abaixo? Para ele, o inferno ainda funciona a lenha… - E a respeito de mulheres? Catequistas, filhas de Maria, zeladoras, solteiras, casadas, viúvas, virgens, prenhas, velhas, novas, tudo lhe serve…
- Um frascário.
- Um garanhão
- Um sacripanta…
- Um filho da puta…”
Podemos admitir que o comportamento do padre Mula não terá sido ipsis verbis tal como o autor descreve, numa de bonomia damos-lhe algum desconto, mas fica a interrogação, porque é que os célebres escritores portugueses andaram sempre a pegar nas escorregadelas daqueles que deviam ser os primeiros a dar exemplo de boas condutas?
O intelectual Óscar Lopes, falecido há dois anos, dizia que Bento da Cruz reaviva imagens impressivas de uma realidade já hoje histórica, no planalto barrosão ainda muito comunitário do decénio de 1930. Compara-o a Aquilino e Torga nas descrições da ruralidade, mas já antes Eça de Queirós também nos deliciou com as suas obras.
Ant.Gonç.(antonio)