Eirada das "Terras do Demo"
“Cortavam o céu alto bandos de pombos bravos e, descuidosas, mondando o grão caído da espiga gorda, cantavam na terra das searas a perdiz e a corcolher. Já as cerejas tinham bichos e a cigarra emudecia longas horas, quebrantada de tanto zangarrear. As manhãs, até toarem os manguais, eram dum silêncio que se sentia do mais pequeno tropel de tamancos estreloiçando nas ruas.
Ainda o sol, furando às espaldas dos montes do Corregal, não se livrava – é um modo de dizer – duma pedra bem mandada, já a eira estava a postos. De chapelão de grande sombra, saiote vermelho e colete de atacadores, mulheres ajeitavam as cuanhas e estendiam mantas a toda a roda para caçar o grão respigueiro. Outras preparavam a eirada com desatar os molhos e espalhar a palha em carreiras, tendo o cuidado de deixar as espigas bem ao léu, para que se embebedassem de sol – o sol que as criara e agora ajudava os manguais a enxotar o grão para fora de seus casulos. E tão breve a palha aquecia, se punham em fila os malhadores.
Benziam-se por mor dos maus repetentes com o vinho, para que o pírtigo, saltando da carapula, não matasse, para a malhada não sofrer desmancho, e, entremeando mangueiras direitas com esquerdas a fim de não quedar a mão em aberto, encetavam a cubela. Todo esse debrum em volta da laja, necessário para desempacho das testeiras, não era de valha, dado no mole; como uma escaramuça folgada, zurra tu, zurro eu, levando ao longe os ecos intermitentes de um batuque, servia para espertar os tendões, pôr à prova as meãs. A tesura era na beira.
Aí, espinha flexuosa, braços jogando em cadência, fôlego por medida, rompiam. Pé atrás, pé adiante, seus dorsos eram mil arcadas fugidias sob o fugidio sarambeque dos pírtigos. Lá voltejavam eles, subindo e descendo tão certeiros e tão lestos que descobrirem-se bem só no ponto morto, ao alto, onde cobravam fortaleza. O mais eram relâmpagos brancos saraivando no ar.
… Era um buzinado de guerra. À porfia, de olhos no chão moventes em que o sol, já alto, se espojava num delíquio de luz e de fogo, apertavam uns com os outros.
… O grão lá ia largando, era ver as zagoletadas que acompanhavam o esguer dos pírtigos na palha delida. Conho, tinha que saltar, para ir ao crivo das cirandeiras, às arcas, à azenha, e volver do forno no pãozinho que, com tanto apego, se pede ao Senhor no padre nosso.
… A partir da segunda eirada, a laja acendia-se numa só labareda; diante deles os muros e as árvores dançavam; o chão metia-se pela terra dentro, apenas o vulto esbranquiçado das medas ficava a boiar à flor do sumidouro. E mais sanha lhes vinha para puxar a aziúme duns para os outros:
- Aguenta parceiro!
- Aí vai, minha mão!
- Eh, Cristina!
E, açulando-se com brutas vozes, despediam de roldão, pós-catrapós, em rijo rebimba-o-malho. Bumba, bumba, pírtigo em baixo, pírtigo no ar, bem empinado a adquirir substância, a palha parecia cortada a cutelo. O grão esperrinchava mais do que cuspido por bacamarte.
A mulher da beira, que ia encostando ao traço dos manguais as gabelas mergulhadas, cega de poalha, rolando e desenrolando-se, de gatinhas e às arrecuas, lembrava a ursa sábia no vaganau das festas.
Eram os arrancos danados. Os poros botavam água como fontes. Colava-se a roupa ao corpo.
… Ao cabo de três carreiras, como mandava o uso, esperava a cabaça do vinho. Era o minuto de cobrar fôlego.
… “
(In “Terras do Demo” de Aquilino Ribeiro)
Ant. Gonç.