Ia eu marginal fora: Freixo – Ribeira a penantes, faço isso a miúde. Agora até dá para fazer umas gincanas labirínticas por entre as obras que estão a fazer entre a ponte Maria Pia e ponte Luís I. Com o trânsito meio cortado, máquinas aos molhos, e os varandins já quase prontos.
Mas eu quero referir-me à vinda da ruralidade à cidade. Como assim perguntará quem se der ao trabalho de perder tempo a ler estas trivialidades. Como quem não quer a coisa lá ia eu divagando o meu olhar por um ou outro pescador numa seca; no rio barcos rafeiros sofrem umas sapatadas pela ondulação dum barco a sério, certamente cheio de americanos de terceira idade cheios de pastel, que irão até ao Alto Douro; nas sapatas dos pilares da ponte do Freixo já não se vêm chusmas de corvos marinhos, pisgaram-se, virão no próximo Outono.
Bem, nesta observação da natureza, eis senão quando me apercebo, tal como na terra dos meus amores, oiço uma taramela. Fui apurando o ouvido e logo ali a dois passos da marginal, na quinta da China lá estava ela em cima duma cerejeira maior, outras havia mais pequenas. E aqui regressei ao meu tempo de rapazinho, lá na aldeia a fazer e montar a taramela com a ajuda de algum compincha da minha igualha. Naquela altura a sonoridade da engenhoca era tirada de um penico de esmalte, já fora de circulação. Ter a taramela mais cantadeira que se ouvisse noite e dia, à distância, era a vaidade da rapaziada. E a passarada já não surripiava as cerejas? Pois sim… Os melros até cantavam de galo com os seus chilreios de papo cheio!
Agora à distância interrogo-me se a taramela era mesmo para espantar a passarada. Penso que era antes um hobby ancestral da rapaziada que gostava de ouvir o matraquear dos badalos no penico, eufemisticamente referido nos dias da modernidade de bacio, pote ou ainda mais snob, vaso de noite: tran, tran, tran…
Ó senhor …. , olhe um milhafre com uma cobra no bico ao dependuro, disse-me o Artur que andava comigo a sacar ladrões que estavam a tirar força aos enxertos de castanheiros que tinham sido feitos em Março. Os garfos tinham tido bom pegamento, os pâmpanos estão em boa desenvoltura. Em voos circulares bem lá nas alturas a ave embandeirava com o réptil até desaparecer na colina de eucaliptal. Lá na terra é bem sabido o apuramento da vista telescópica destas aves, em voo picado e rápido agarram um ou outro pinto, quando a mãe galinha ouriçada topa, já é tarde. Caçador, pescador, necrófago são atributos desta ave de rapina, protegida pelas leis do ambiente mas não muito querida pelos rurais devido à roubalheira dos jovens galináceos como atrás referi. Se há pilha galinhas, o carniceiro é um pilha pintos. Os cinegéticos também não morrem de amores por este predador, que surripia os caçapos e mesmo perdigotos de perna leve e até alguma zorra encatrapiada.
Bento da Cruz, escritor barrosão, no seu livro “Planalto de Gostofrio” elege as aves em várias escalas.
“ De sangue real: águias, (onde se encaixa o milhafre), condores, gaviões, patos bravos, garças, perdizes, pardas, parpalhoses;
às de brasão: pombos selvagens, gaios, rolas, tordos, picanços, melros, estorninhos, poupas, narcejas;
às de má reputação: mochos, bufos, corujas, corvos, pegas, cucos;
às mendicantes: pardais, pássaros da navinha, lavandeiras;
Outros muitos pássaros e passarecos de que nunca tive na ficha o nome de letra e acento correcto, mas que bastando observar-lhes o voo, o canto, o poleiro, para os inscrever certos no género e espécie de usos e costumes.”
Bento da Cruz tal como Aquilino Ribeiro, escritores do mundo rural, nas suas obras deixaram-nos saberes, das aves, da caça e da pesca. Manuel de Lima Bastos, um estudioso do escritor beirão numa das suas últimas obras “Mestre Aquilino, a caça e uma gaita que assobia”.
Falar nas transformações no modo de viver, que se deram na nossa geração, é daquelas coisas que nos deixam estáticos perante o antes e o depois. Durante centenas de anos as rotinas sobrepuseram-se. Esse ciclo fechou-se sobretudo a partir da segunda metade do século XX e agora é altura de preservarmos as memórias dos usos e costumes dos nossos que para trás ficaram.
O salto foi a todos os níveis mas aqui quero apenas referir-me ao meio rural. A nossa entrada para a comunidade europeia foi a machadada que acelerou a alteração do interior rural do nosso país. Se foi para melhor ou para pior, ainda hoje as opiniões dividem-se, mas uma coisa parece certa, não foram salvaguardadas especificidades na nossa agricultura/pescas.
Na imagem, entre outras memórias, cangas e um jugo. As primeiras eram assentes nas molhelhas, estas eram colocadas em cima da cabeça dos animais entre as galhaduras, por sua vez todo o conjunto era apertado com as apeaças. (Na minha região dão o nome de “acha” à canga. Das minhas pesquisas na NET não cheguei a conclusões, no entanto encontrei “acha”, arma de guerra medieval que tinha duas meias luas, tal como tem a canga, daí o nome dado à canga?) Quanto ao jugo era mais utilizado no cachaço dos bois. Na minha região e em toda a zona montemurenha o trabalho era feito sobretudo com as vacas, daí a designação de "carro das vacas".
As cerejeiras estão com ar da sua graça, coradinhas que é uma beleza, direi mais, tal como as bochechas de menino saudável e contente e não tanto como um abegão pimentão, com passo trocado, que no dia feira mandou abaixo umas canecas de verdasco após ter metido ao bolso um maço de boas notas de mil da venda do bezerro que engordou.
Nestes dias do Maio florido, a canícula aperta, então sobretudo as manhãs são aproveitadas para as tarefas agrícolas fora da exposição solar.
Escada artesanal de oito passais, cesta com gancho e uma ladra, arregacei as mangas e toca a apanhar. Se bem que a cerejeira não esteja ainda na terceira idade, é bastante copada e forma uma calote esférica acentuada e perfeita. Se de um lado empoleirado a mais de três quartos da escada estava o apanhador de serviço, que era eu, no lado oposto da cerejeira outros apanhadores, melros de bico amarelo, tal como rapinadores a contas bancárias de bancos esfrangalhados, era um ver se te avias. Entravam silenciosos encobertos na ramaria, bicada p´ró papo e na fugida atiravam “risadas”, como que a dizer, esta já cá canta.
O meu trabalho de colhedor começou então a ficar mais ao ralenti com a convivência destas aves que competiam na apanha, observando este surripianço naturalista.
Com a cesta já quase cheia fui desafiado numa de sugestão por alguém que me quer bem e à natureza:
- Já chega, desce, deixa ficar algumas na cerejeira para a passarada! E eu que vivo irmanado com a natureza, aceitei e aplaudi a sugestão sem delongas.
Tinha eu acordado às quatro da madrugada, não sei que raio de rotina me está a acontecer, Morfeu anda a tramar-me, pois ando há uns tempos a ficar a contar carneirinhos por tempo indeterminado. Então às seis e trinta fora da cama, fiz nas calmas a higiene matinal e pernas para que vos quero até à estação de Campanhã, moro em Valbom (GDM), onde apanhei o Intercidades até Pombal, com um desconto de 50%, e viva o velho.
Ah! Era aí o encontro anual do maralhal do meu Batalhão que gramou o roçar dos ossos por terras de Angola, estou a falar da chamada guerra colonial. Quarenta e oito anos, é muita carga, após o embarque em Lisboa no paquete Vera Cruz expressamente adaptado para o transporte de tropas.
Todos barrigudos ou tábuas rasas, mais aqueles que estes, carecas ou cabeças brancas, todos na portela fatídica dos setenta e alguns já mais além, caçarretas uns, outros com artroses bem evidenciadas, mas também outros em bom estado de conservação, todos afinados no mesmo diapasão, reviver um tempo que apesar de ter sido difícil, cimentou amizades.
Esposas, filhos e netos deram também um colorido no fervilhar da cavaqueira. Embora estes não tivessem vivido as “cenas” de guerra, “elas” foram sempre uma retaguarda de apoio psicológico estimulador nas eventuais agruras.
Conversas cruzadas do teatro das situações operacionais iam sendo desbobinadas passados tantos anos, pormenorizadas como se tivessem acontecido há um ano, mês ou na última semana.
São também estas as memórias dum povo que se devem manter. Para o ano há a continuação de lembrarmos a guerra em palavras.
Quando saímos da zona de conforto e nos embrenhamos para o interior constatamos um país a duas velocidades. A desertificação tem-se vindo a acentuar e é mais notória nas regiões raianas, no entanto o aspecto turístico tem vindo a ser incrementado.
Já conhecíamos as aldeias históricas da Beira Baixa, desta vez fomos ver as da Beira Alta um pouco embalado pela descrição que Aquilino Ribeiro esmiuça dessas terras descritas nos seus livros com o rigor campestre que tão bem sabia. Aldeias bem preservadas nos seus traços originais onde Portugal está sempre presente, carregadas de história. Os seus nomes atestam a sua nobreza – Castelo Mendo, Castelo Bom, Castelo Melhor, Almendra, Marialva, Almeida, Pinhel, Cidadelhe e Castelo Rodrigo onde mais nos demoramos. No cimo do morro, o castelo amuralhado é um espelho da história de Portugal. Na sua envolvência o casario com as ruelas estreitas convidam-nos a ir por aqui e por ali sempre na descoberta. Enquadrada na urbanidade chegamos à Casa da Amendoeira, turismo de habitação, que antecipadamente tínhamos reservado para nos receberem. Foi então aí que confortavelmente podemos descansar após as boas vindas da Srª. D. Madalena e do Sr. Alberto, donos da casa.
Na manhã seguinte tivemos com pena nossa de deixar este espaço muito confortável, após um pequeno almoço repleto de coisas boas. Ficamos clientes e aconselhamos vivamente esta casa, para quem for para aqueles lados, conhecer ao vivo a história do nosso país.
Há boas e más rotinas. Não sair da cepa torta, do ram ram da vida poderá ser mais do mesmo, já outras rotinas se me afiguram bem positivas. É das últimas que me apetece tecer aqui duas tretas.
Meio da tarde, há que esticar as canetas, pelo passeio pedonal que vai da Ribeira de Abade até Gramido, terras de Gondomar. É sempre uma caminhada salutar para o físico e para a mente. Com o rio por companhia é um ver se te avias, pequenada, novos, assim assim, e velhos, a romper solas.
Há caras que já são habitué, uma delas entre outras é um ferrinho. Pessoa que pelo aspecto vê-se que não é de posses, (na imagem em descanso a meio da caminhada), boné às três pancadas e como auxílio para a andança uma bengala que foi recuperada da espinha dorsal dum guarda-chuva (a avaliar pela haste de madeira nota-se que não foi da chinesada), sacola a pedir reforma a tiracolo mais sobre o dorsal, vim a saber que transporta a merenda para si e para os seus amigos. E quem são os amigos? Dois cachorros, um já velhote, cego dum olho que lá se vai arrastando, o outro, um senhor cão, alentado, preto na cor e de nome, “labrador”é a sua raça, bem nutrido, cachaceira de envergadura, olhar doce, com boa pose mas mansinho como um querubim, que até as crianças o abraçam, diz o dono e eu confirmei. Só lhe falta falar, diz o seu tratador, sempre atento ao pequeno gesto que este lhe faça. A rotina deste trio desperta-me a atenção quando também muitas vezes ando por aquelas bandas. O ar fluvial e a oxigenação campestre ao longo do passeio pedonal bem como a proliferação das várias espécies avícolas no rio e nas margens, (palmípedes, gaivotas, corvos marinhos e outras aves mais leves, dão um ar biológico ao espelho de água), é um benefício a não desperdiçar, não só para os humanos mas também para a canzoada.
Normalmente passo as noites com algum sossego nos braços de Morfeu. De manhã quando acordo não tenho motivos para dizer que tive sonhos dourados ou não. Imaginações de mafarricos a quererem fustigar e a empurrar com forcados para uma fogueira em altas labaredas, sinónimo de inferno, contam-me alguns amigos que são molestados com tão bera sonhado.
Mas uma noite passada, excepcionalmente um sonho que me fez vaguear pela cidade do Porto. Andei pela baixa, sem sair da cama, eram três da manhã, e o que vi deixou-me nas nuvens. Na placa central da Avenida dos Aliados tinham sido repostos os emblemáticos jardins que tinham sido, há pouco mais de uma década, mandados às malvas por arquitecto de nomeada. Mesmo àquela hora da noite o perfume das flores fascinava magotes de turistas que de máquina em punho fartavam-se de registar esta beleza para levarem de recuerdo para as suas terras. Andei por ali, não cabia em mim, desço depois até à Ribeira, apinhada também de estranjas e fico-me junto à ponte Luís I. O trânsito era mais que muito e fico ali a olhar para o polícia sinaleiro que em cima da peanha domesticava a circulação. E aqui também os flaches das máquinas fotográficas pareciam clarões de relâmpagos, ninguém queria perder a pitada.
De manhã ao despertar a alva, abri a pestana, fiquei na dúvida se o que me tinha passado pela cabeça seria ou não verdade. Levantei-me num ápice, lavei-me à gato e fui direitinho ao GOOGLE certificar-me. E na verdade parte do meu sonho era realidade, o “cabeça de giz” lá estava, bem afiambrado, a dar no olho com luvas e capacete branco, junto à ponte Luís I, no cruzamento com a avenida Gustavo Eiffel. Quanto à Avenida dos Aliados, nada na manga, o eirado mantem-se e as pombas em concubinato com uma ou outra gaivota, vão-se espulinhando e larando no espelho de água, vulgo tanque, e debaixo das cadeirinhas pindéricas, que rodeiam o dito, pardais sorrelfas rapinam migalhas de alguma bucha dos camones.
Ficará certamente para a próxima o ajardinamento, senhor presidente da CMP, entretanto deixe de colocar naquele local carrocéis, pois na minha óptica não é coisa que dignifique aquele espaço nobre da cidade. Sobre a Avenida dos Aliados já por aqui várias vezes chovi no molhado, desta vez foi à boleia de um sonho.
Vento forte, chuvadas e muito frio tinham sido ventiladas pelos alarmistas do boletim meteorológico para este fim-de-semana, mas a coisa ficou por menos.
Domingo, para sair um pouco à rotina foi-me proposto, aqui em casa, ir de manhã até Serralves. Havia lá uma venda de roupa da pequenada e então há sempre aquela curiosidade feminina de ver como andam as modas. Alinhei, não para ver a farrapada in, mas aproveitei para dar uma passeata pela quinta, ver a natureza que nesta altura do ano está mais mortiça. Entretanto também assentei arraiais no bar junto ao museu para dar uma vista de olhos no Jornal de Notícias.
Chegou a hora do almoço e aqui em casa como não havia nada feito, optamos por ir pôr os pés debaixo da mesa no restaurante. Um cozido à portuguesa não é coisa que se ponha de lado, uma vez não é vez, para quem gosta de se pôr distante das gorduras.
E um caldo de ministros, sugeriu-me o simpático empregado. Fiquei um bocado encarrilhado mas pus os meus neurónios a despertar e assinei por baixo, vou nessa. Aqui em Gondomar, terra que foi deles, nabos, é sempre num espírito de manter as tradições que me são caras. Que haja ministros nabos não será coisa muito acertada, agora que eles se redomem com cobertura nabiçal se safem à grande e à francesa parece evidente. Alguns têm ido dentro, outros têm passado nas malhas, mas que andarão com o coração nas mãos parece que sim.
De tarde estive por casa, liguei para a rtp memória, já que os canais generalistas era só futebol, Júlio Isidro entrevistou duas figuras interessantes, Maria Antónia Palla, jornalista, defensora dos direitos das mulheres e também o rei do rock and roll dos anos sessenta/setenta, Vitor Gomes. Interessante as imagens de há cinquenta, sessenta anos.
Até aos meados do século XX a riqueza do meio rural estava sobretudo na terra que era aproveitada, leia-se cultivada, nem que fosse a mais pequena leirinha. Mas foi a partir da globalização que as coisas se inverteram com aceleração a todo o gaz. Em Macieira, Fornelos era o milho, centeio, vinho, mimos agrícolas e num tempo mais recuado o linho, que sempre foram o granjeio dos rurais. A par do cultivo da terra era o gado vacum, que ajudava os lavradores nos trabalhos, suínos, ovinos, caprinos, galináceos, láparos. Era um frenesim buliçoso dum país eminentemente rural.
Era perante este cenário do aproveitamento intensivo dos espaços agrícolas que até se chegavam a construir os canastros por cima dos caminhos públicos para que não ocupassem espaço em terra lavradia. Em 2007 tinha eu aqui num post referido um desses canastros. Agora tive conhecimento que foi retirado. As exigências de uma vida melhor, alargamento e calcetamento dos estreitos caminhos para acesso de carros, nomeadamente ambulâncias ou carros de bombeiros, ditam que vestígios de uma época vão ficando apagados.
Das minhas memórias de petiz sou levado a uma retrospectiva de quantos carros de vacas passaram nesse caminho sob essa ponte que o canastro formava. O meu próprio pai que tinha uma tapada a montante ali passou com carradas de mato para as cortes do gado e também de lenha para a cozinha, dava um jeitaço para as noites frias do Inverno e para curar o fumeiro suspenso no sarilho.