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Magistério6971

Os autores deste jornal virtual apresentam a todos os visitantes os seus mais cordiais cumprimentos. Será bem-vindo quem vier por bem.

Magistério6971

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Geografia sentimental

No post anterior abordamos a má vizinhança dos lobos vista através dos tempos. Vamos hoje de raspanço referir os ditos, mas sobretudo aqui avivar a interioridade das Beiras segundo Aquilino Ribeiro na sua obra “Geografia Sentimental” de 1951.

“Até a Cabeça de Alva, não há mais que perspectivas de planalto, afora a trovoada de penedos que coroam o espigão da serra do lado norte, a cavaleiro dos poucos montesinhos de Ariz, Pêra Velha e Carapito. Esses penedos são enormes como castelos e bastos como ovos em canastra. Como se condensou para ali tanto magna e tomou aqueles feitios caprichosos do esferóide?

Ao chegar ao Senhor dos Aflitos, o horizonte, com um vastíssimo e suave espaldar de montanhas ao longe, para lá das planuras baixas do Távora, abre-se um leque portentoso, rico de matizes e estrelado do nácar e madrepérola das aldeias e dos casais. Ao que é de imenso, o golfão celeste infunde-nos a ansiedade de que se acompanha tudo o que releva noções de infinito. E as suas tintas indecisas, roxo, cinza, azul, anilinas muito finas e fluidas de que a luz aparenta ser apenas o dissolvente, não só nos deslumbram como inebriam. A capela que ali está, sempre branca e escarolada, no encontro dos caminhos, diz às outras, as cem e uma ermidas que luzem esparsas pelos montes: A paz seja convosco. Cá se vai vivendo na lei e graça do Senhor.

Nada mais impressionante do que o salto orogénico da terra, segundo a noção óptica, do monte em que estamos para a corda de montes distantes, que se vêem colear em anfiteatro. Na curva, localidades, que escolheram os abrigos e recessos dos vales, adivinham-se mas não se avistam; tiram-se outras pelo campanário ou alguma torre altaneira; mais raras as que brilham e se espenujam como pombas ao sol.

À espalda, a poucos minutos, deixa-se Vila Chã, acaçapada, como a palavra o diz, numa das balsas do planalto. Acama ali neve para muitos dias no pico do Inverno, e ouvem-se os lobos uivar dos morros fronteiriços, chamados pelo fartum dos rebanhos.

Uma noite de luar, que subia a serra com o meu impávido vizinho Joaquim Natário, cada um de nós na égua patuda da casa, tivemos desde os pinhais da Boa Vista a sua escolta graciosa. Eram quatro bichos corpulentos, que nos seguiram de lado, a distância de tiro, eclipsando-se nas matas e fundões, reaparecendo nos tesos calvos, aguentando, sempre em linha connosco, um chouto elástico e seguro. Um deles ostentava uma bela e afrontada testa, que infundia respeito.

Mais longe, e à roda de mil metros de altitude, abaixo da trabuzana de penedos, enrodilha-se a povoação de Carapito. Entre Nave e Lapa não se encontra gentio mais bárbaro e turbulento. Brigam por dá cá aquela palha. Pelo génio, os hábitos, e o teor da crónica local apraz-me ver ali um reduto de turdetanos, vingativos, feros, desenganados e possuídos duma actividade inata e arbitrária. Às duas por três, um dos filhotes da terra senta-se no banco dos réus. Que crime praticou? Matou um homem. Deu um tiro noutro. Apunhalou. Nunca comédia ou drama de baixo coturno…”

 

 Ant.Gonç.(antonio)

 

 

Quando os lobos uivam

Vamos por aqui continuando a relembrar o manancial prosaico de Aquilino Ribeiro, a cultura é sempre uma mais valia. O título deste post nada tem a ver com os predadores dos ovinos e caprinos, vacas e asnos também como no passado nunca se tinha visto, foi um romance que pôs em alvoroço as forças repressivas salazaristas, cujas edições foram proibidas. O regime de Salazar não admitia críticas mesmo as encapotadas.

Na actualidade os lobos uivam, ou melhor andam sorrateiros às caçadas, por outras razões. Regressando ao meu tempo de jovem os lobos eram mal queridos, odiados, pois a cada passo surripiavam gado miúdo, leia-se ovinos e caprinos, aos lavradores. Durante décadas os larápios eclipsaram-se. Apenas  de vez em quando os naturalistas lamentavam-se que a raça estava em vias de extinção, eram precisas medidas para inverter a situação.

Bem, chegamos agora e os média referem ataques dos lobos aos gados no Montemuro, Gerês, Pinhel e mais, cito de memória. Então uma varinha mágica fez nascer lobos pelas serras!... Os serviços da conservação da natureza não abrem jogo, mas tudo indica, segundo o povo, que foram “botados”. Numa pesquisa na NET há uma herdade na região de Mafra onde estes animais são criados, Centro de recuperação do lobo ibérico.

Era eu um petiz, recordo-me andar lá pela terra um serrano com a carcaça dum carnívoro, ou seria só a samarra, às costas a pedir ajuda por façanha tão do agrado dos pobres lavradores.

Sobre isto passo a citar Manuel de Lima Bastos referindo-se ao livro de Aquilino “Quando ao Gavião Cai a Pena, obra de 1935, diz:

“Era hábito antigo exibir o lobo por quanto povoado montesinho houvesse para recolher as esmolas de preceito que ninguém regateava, as quais rendiam ao afortunado abatedor da fera grossa tanto em maquia tanto em dinheiro como em géneros de boca. António das Arábias apressou-se a preparar o andor onde o bicho seria exibido para logo sair em procissão e iniciar-se a rendosa colecta. Improvisaram umas andas com duas varas de pinheiro e deitaram a fera em cima. O António das Arábias fez de pároco e rezou-lhe o de profundis:

   Este lobo não ia à missa,

   Nem à missa, nem ao sermão;

   Comia cabra à sexta-feira,

   Não tem absolvição.

 

Logo rompia, em cantochão, o coro dos acompanhantes que engrossava à medida que se incorporavam mais e mais fiéis de quantos lugarejos vizinhos havia para ajudar ao responso do defunto.”

Eu sei que é uma tarefa assaz intrincada, o equilíbrio entre a preservação da espécie e os legítimos interesses das populações do interior. E todos sabemos como o estado foge com o rabo à seringa, paga tarde e mal os prejuízos feitos pelo predador, além de pôr uma série de condições aos utentes do gado, cão de guarda por cada 50 animais ou tê-los a pastar em locais confinados.

 

     Ant.Gonç. (antonio)

 

 

Vida rural de outrora, caseiros e senhorios

 

Será que em 1919 “as Terras do Demo” de Aquilino Ribeiro se estenderiam para além das Beiras? Manuel de Lima Bastos na sua obra “Mestre Aquilino, a caça e uma gaita que assobia” diz citando o autor regionalista na obra citada, assume a evidente rusticidade, complementada pelo mais extremo primitivismo do modo de viver das suas gentes, dessa mesma ancestralidade existencial se tornou o paradigma fielmente revelador.

Voltando à interrogação inicial, penso que sim, pois a interioridade do país com mais ou menos intensidade fazia-se sentir em todos os quadrantes. Um país de gente pobre, mas que aceitava a miséria pacificamente. Vivia-se hermeticamente e só alguns iam além das fronteiras onde conheciam outras culturas e melhor nível de vida.

Vou dar aqui testemunho dum país de pobres submissos. Já por aqui falei no meu avô, que não conheci, não gosto de ser repetitivo, falo aqui nele para contextualizar o que a seguir exponho. Foi abanar a árvore das patacas para o Rio de Janeiro da “República dos Estados Unidos do Brasil”, comprou terras e tinha caseiros. Rebusquei umas velharias na papelada mofenta e cato uma declaração de 1929, onde o caseiro faz um compromisso, aceite pelo senhorio, com as seguintes condições para a feitoria de terras. (Naquela altura a palavra escrita ou com o aperto de mão faziam lei). Assim:

“1ª condição – que tudo o que produzir o chão, partiremos com o dito patrão a meias.                              

2ª condição – que todo o fruto do ar, será partido de terço, duas partes para o senhorio e uma para o dito caseiro.

3ª condição – que a semente de milho, será à custa do caseiro, assim como a de feijão, a de centeio e batatas, será metade à custa do senhorio e a outra metade à custa do caseiro.

4ª condição – que a cega e malhada do centeio, será à custa do dito caseiro.

5ª condição – que no ano em que sahirmos deixará todas as palhas e canas de qualquer espécie.

6ª condição – que no ano em que sahirmos só poderá fazer uma dúzia de colmo, meia para o patrão e a outra meia para o caseiro.

7ª condição – que todas as palhas de erva ou de centeio serão emoreiadas ou guardadas para onde o patrão mandar.

8ª condição – que o caseiro ficará com a obrigação de semear a erva nos prédios seguintes … … … …, como também terá de entregar ao dito patrão uma quarta de serradela. Todas estas sementes serão semeadas quando o patrão ordenar.

9ª condição – que o dito caseiro fica obrigado a cortar três carros de mato, de quatro dúzias cada carro para …. E mais dois carros de mato, um para … e outro para … (propriedades indicadas). Todo este mato será cortado e posto à porta, até ao dia primeiro de Agosto, do ano em que sair.

10ª condição – que o caseiro só poderá semear 2 alqueires de linhaça.

11ª condição – que o dito caseiro não poderá cortar lenha nenhuma cem autorização do seu patrão.

12ª condição – que qualquer serviço que o dito patrão precisar, como seja mato, lenha, lavoura das terras que o patrão fica fazendo, e caso não possa ir, o dito caseiro emprestará o gado ao senhorio.”

Nota: Quando um caseiro se mudava para outro senhorio era sempre pelo S. Miguel.

Acresce também dizer que havia empenhos para ir trabalhar as melhores terras. Lá ia o pretenso caseiro de chancas ferradas, calças domingueiras mas com testeiras, chapéu na mão, com sentimentos humildes mas convincentes a mendigar os melhores almargeais de fulano ou sicrano. (para que esta abordagem tivesse sucesso já teria chegado antecipadamente um chibinho abitolado com os galhos a despontar ou um anhoto desquitado, a casa do dono das pretendidas terras).

Nesta declaração fala-se na produtividade do “chão”, a meias. Nalgumas terras era também de um terço para o caseiro tal como o “ar”.

A quando da matança do porco, não era uma obrigação taxativa mas quase, o caseiro dava ao patrão um lombo do cevado e uns quilos de açúcar que variavam em quantidade conforme as terras, as de boa lavra davam mais, normalmente pelo Natal. Na Páscoa meia dúzia de frangos eram também ofertados ao patrão. O abade da freguesia também se chegava à frente de mão estendida, era agraciado com uns quilos de açúcar, além da côngrua, dos pobres agricultores.

  (antonio)

 

 

 

 

Grande palmada

Todo o cidadão cumpridor dos seus impostos não pode ficar indiferente à notícia, no JN de 18/02/2015, cujo título é:

“Arquivada expropriação milionária na A4, em Paredes” e em subtítulo, “AEDL/BRISA propôs 9600€ mas aceitou pagar meio milhão por 953 metros quadrados”.

E o desenvolvimento da notícia diz que o DIAP do Porto concluiu pela inexistência de indícios suficientes de crime no caso de uma pequena parcela no nó da A4 com a A41 que rendeu meio milhão de euros ao dono da parcela, (administrador da fábrica Fibromades de Paredes), mandatário do candidato à câmara de Paredes em 2009, assessor de José Sócrates.

Refere o jornal que, por parcela contígua, mas com o dobro da área, a AEDL pagou 35 mil euros à proprietária, vidraceira “Reviver no Tempo”. E depois diz que o engenheiro responsável para o citado nó das auto estradas, está sob investigação neste e noutros casos. O recebedor da choruda quantia, segundo o jornal, financiou a campanha eleitoral do agora maior partido da oposição, já depois de receber a milionária indemnização.

E agora deixo a minha apreciação. Grandes obras do governo, engendradas pelo preso mais conhecido no estabelecimento prisional de Évora, deram origem a grandes cabazadas. O caso das auto estradas bem como do parque escolar, (até a ministra da educação da altura foi condenada), gordas sapatadas se deram. Empreitadas para os amigos foram um forrobodó. Só faltou o TGV para haver mais umas mamas! Bem se esforçou o primeiro na sua tribuna das vantagens da grande velocidade.

As portagens são caras, pois são, com estes gastos à cabeça!

No parque escolar gastaram-se milhões, agora não há tusta para aquecimento!

Isto é mesmo um país governado por gente trauliteira.

 

Nota: Nomes dos intervenientes estão escarrapachados no JN.

 

  (antonio)

Os de prima tonsura maselados

Os célebres escritores portugueses dos séc. XIX e XX sempre gostaram nas suas obras de brincar com as fraquezas dos eclesiásticos.

Tinha eu lido aqui há uns anos o “Crime do Padre Amaro” de Eça de Queirós, que além do sumo ser de caracter amavioso, começa logo na primeira página com o pecado da gula do falecido padre Migueis, sendo conhecido pelo clero diocesano pelo “comilão dos comilões”.

“O Carlos da Botica – que o detestava – costumava dizer, sempre que o via sair depois da sesta, com a face afogueada de sangue, muito enfartado: - Lá vai a jibóia esmoer. Um dia estoura!”

 

Além deste deslize dos clericais há ainda a castidade desses humanos, abençoada pela Igreja, que saiu furada a mais das vezes .

Em todas as obras de Aquilino que já li, não direi que ridicularize, mas preto no branco, os eclesiásticos mandavam às malvas o que tinham jurado a pés juntos, a abstinência aos prazeres carnais. Vejamos um excerto da “Casa Grande de Romarigães”.

“Luís da Cunha Antas era neto do licenciado Gonçalo da Cunha, abade de S. Tiago de Romarigães e de S. Paio de Agualonga, clérigo de teres e haveres que trouxe para as suas abadias uma moça de Rubiães chamada Maria Roriga (depois conhecida pelo nome de Maria da Cunha) e fez em ela um filho que reconheceu de resto e veio a chamar-se Domingos da Cunha, e era nem mais nem menos o pai do impetrante, Luís da Cunha Antas. Mais era notório e voz corrente que o dito licenciado, porque se fartasse da manceba ou quisesse coonestar o seu acto, a casou com um apaniguado, natural da Freita, da mesma freguesia de Romarigães, continuando ambos a manter trato carnal, porquanto viram-na entrar muitas vezes para a mata da Casa Grande, onde ele a esperava, alegando ela, que fora às pinhas, ora aos míscaros, a pessoas que lhe verberaram o procedimento. Cinco filhos tinham nascido no cortelho, sem se saber qual dos dois era o pai carnal deste ou daquele, dada a participação amistosa e alvar que tinham da referida fulana.”

 

Os clérigos também tinham o prazer cinegético, mas este à luz do senso comum não será pecado, digo eu. Vejamos na obra citada:

“Padre Tirteu fora caçador nos bons tempos e, quando um láparo lhe dava o traseiro a ler, estramontado com o barulho, seguia-o de olho matreiro, observando-lhe os pulins, rabo branco a borboletar e orelhas derrubadas. À devida altura disparava: bum! Via-o alçar as patas, e mentalmente encomendava-lhe o bem da alma: Estavas à cinta, ladrão, estavas, nem o Padre Sº António te valia!”

Padre Tirteu, também tinha as suas mazelas de modo que D. Telmo, senhor da Casa Grande de Romarigães e vastas propriedades, ao referir-se indirectamente ao capelão dizia:

“Ou é só para beber o vinho das galhetas, para viático às canadas de verdasco que entorna pelo dia fora e o conservam são como um pêro?!”

 

  (antonio)

Olhar o passado

Há sempre conversa trivial com um amigalhaço que comigo andou a dar o corpo às balas, pelo interior de Angola, passe o exagero pois ambos eramos militares do arame farpado, antítese dos da picada, isto falando em linguagem de caserna militar, na chamada guerra colonial e que ciclicamente nos encontramos no ginásio. Aí vamos tentando não deixar adormecer os músculos físicos e mentais, fazendo alguma ginástica, não aquela que Aquilino Ribeiro atribuía à peixeira do burgo portuense, que admoestava um puto rafeiro, sorrelfa, que certamente lhe estaria a medir as regueifas das pernocas, digo eu, “Ó meu filho duma vaca, tu não irás fazer genástega na armação do teu pai!”.

Trocamos conversa que quase sempre afunila naquele tempo da juventude. Bem, à parte essas recordações há também outros motivos de paleio. Então estávamos numa de abordarmos os avanços tecnológicos na nossa geração. Termos na hora o visionamento do ataque às torres gémeas em Nova Iorque, já lá vão dez anos, ou o furacão que varreu milhares no cabo do mundo, era de facto impensável no tempo dos nossos avós. E a realidade é que os avós, bisavós, e trisavós dos nossos avós tiveram uma vida sempre no mesmo ritmo, argumentava o meu interlocutor e que eu também avivei do meu subconsciente. Durante centenas de anos, a agricultura, o carro de bois e afins, e os animais foram a companhia de sempre no passado.

Na nossa geração e em parte dos nossos pais, também com o surto do automóvel, com o desenvolvimento que se conhece durante o século XX, e das novas tecnologias, alterou-se radicalmente o modus vivendi, neste caso do povo português.

 

   (antonio)

Olhar o Porto - CCIII(Tripeiro, com muita honra)

Aquilino Ribeiro andou pela Sorbonne onde conheceu grandes mestres. Também, e sobretudo, mergulhou no meio rural, pisando a bosta dos caminhos, retractando o povo como só ele sabia fazer: “só depois de palmilhar as aldeias lucilantes do Norte de Portugal com garotos de calças rachadas no sim senhor e tamancos folclóricos de testeiras amarelas, e colher no pino do Verão a sombra fátua das cornijas senhoriais daqueles solares vetustos, se compreendem os romances de Camilo”. O meio urbano nomeadamente o Porto também foi retratado por este escritor de excelência. Vejamos alguns excertos dos anos cinquenta do século passado, que o autor se lamentava de já terem desaparecido e que tinha presenciado na sua juventude.

“Do Porto da minha mocidade, burgo inteiriço e tão essencialmente mesteiral… já pouco resta. Demoliram o Palácio de Cristal, último reduto dum passado simples, cheio de histórias de caixeiros enamorados pela filha do patrão, tirano de cabelinho na venta, e de guitas com sopas da Maia. Já se não vêem gaiatos malcriados, nem varinas de língua mais vulnerante que estoques. Extinguiram-se duma vez para sempre as vozes shakespearianas contra o desalmado que dançava o saricoté quando elas corriam vergadas debaixo da canastra do peixe: Ó meu filho duma vaca, tu não irás fazer genástega na armação de teu pai!

Sobe-se ainda a rua torta e escalavrada do Bonjardim, mas naquela casa de cornija abacial e reixas verdes já não assoma o rosto especioso da mulher mais linda e brejeira do burgo. Do seu João José – não sei se por despeito maldoso – dizia-se que estava tão enramado que dois cucos a cantar nas duas hastes mais altas se não ouviam um ao outro. (esta graça idiomática quanto a mim é uma, entre muitas, expoente máximo do do léxico de Aquilino).

Na Rua do Loureiro, o diligente marçano puxava o patego de Vila Nova de Famalicão pela aba do paletó para dentro da quitanda. E por todas aquelas ruas sem nome, escorregadias, alumiadas a gás, com um gato preto, de cócoras, à espera como um Buda desabusado, e o infalível namoro do asfalto para a janela de guilhotina, ainda se viam discorrer capas à espanhola, terçadas para o ombro com garbo dom-juanesco, botas à Frederica, possivelmente ectoplasmas camilianos ou encarnações metapsíquicas dos romanceados de S. Miguel de Seide.

Que mais do meu bom velho tempo, pai de vida? Do meu bom velho tempo subsistem também os carros americanos, que saíam maviosamente de manhã da Praça de D. Pedro, Rua de Santo António acima, para regressarem à noite pela Rua das Carmelitas abaixo. Iam fazer o giro da Rua da Constituição, mais pitoresco e longo que a Volta ao Mundo em Oitenta Dias, de Júlio Verne.

Os bons habitantes, sim, quando abriam a boca era para pronunciar os nomes de seus próceres, Junqueiro, Basílio, Bruno, Duarte Leite. De olhos admirativos viam-nos no cenáculo do Camacho, depois desamarrarem dali para a Praça Nova, onde prosseguiam, deambulando até altas horas. … Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras e sobretudo a pedagogia, impregnadas ainda de miasmas.

O Porto era brioso do que fizera, das suas arrancadas, do seu D. Pedro, do próprio jacobinismo, concordes monárquicos e republicanos na glória do 31 de Janeiro. E, quanto a filáucia, não havia mão, fosse patrícia, vestida de anéis, fosse papuda e grossa do trabalho, que espalmando-se no peito não desse um digno compasso à voz ufana:

- Tripeiro, com muita honra

Nota: Esta parte última sobre a Praça já aqui tinha referido num post

 

     In “Arcas encoiradas” de Aquilino Ribeiro

 

 

Ant.Gonç. (antonio)

"O malhadinhas"

Malhadinhas, almocreve que palmilhava terras da Beira desde a Costa Nova à raia, com epicentro em Barrelas (actual Vila Nova de Paiva), era um duro como era o seu macho ”de jarretes rijos como aço”, homem de escacha-pessegueiro quando alguém lhe fazia frente. Em Santa Eulália, “um varredor de feiras temível, arganaz dum homem – peito em aduela, cachaceira de boi, cara de poucos amigos – a ensarilhar a racha com tanta gana e fantasia que nem doido varrido a perseguir mosquitos à paulada.” Provocou Malhadinhas, levou que contar. O mesmo aconteceu “ao caceteiro Zé Piranga de Cinfães que vivia da vermelhinha e do que zarpava aos pacóvios”, não teve melhor sorte nem os marmanjos da sua corja.

 

“Que a minha língua era ponteira como a faca que trazia à cinta – murmuravam as bocas do mundo mal consideradas. A faquinha, assim Deus me salve, tinha uma função e não mais, cortar a côdea, o queijo, a febra do presunto, quando andava de jornada.

… Quanto à língua, cortaram-me a trave ao nascer; mas nunca levantei falsos testemunhos, nem acoimei de curta mulher honrada, nem de cornel sujeito que não tivesse testa para marrar.

…Eu lhes conto um passo assucedido, pelo qual, se o Pai do céu se não esqueceu de o apontar no livro da glória e a remissão é certa, do pecado mais taludo estou quite, ainda que me não morda nenhum de monta. Pois oiçam, meus fidalgos:

Um entrudo, quinta-feira mesmo das comadres, à boca da noite, o Bisagra desafiou-me na venda do Zé Pinto para jogar uma partida de chincalhão. Vossorias sabem: o Bisagra era senhor duma destas galhaduras, mais formosas, compridas e retorcidas como não há memória que andasse armada a testa dum serrano. Mais abundante nem paliteiro com palitos, e assim falada nem a porca de Murça. Tão coitadinho, que seria caridade dizer-lhe ao passar um portal: baixa que marras!

A mulher era fêmea de alto lá com ela, sempre mais frescal que alface, requestada de fidalgo e de padre cura.

Pegámos das cartas e o ladrão com a felícia toda, o sortalhão que dizem próprio daqueles a quem sobra o que falta às cabras mochas! Na cova da mão, sempre o cinco de oiros, a espadilha, o cinco de paus, levantou-me em catréfia seguida quatro quartilhos e um bolo. Paguei, mas bufei, que à mandinga da sua condição e não a jeito nem à sorte honesta atribuí eu, e comigo todos quantos ali estavam, aquele desaforo a ganhar.”

 

 

Quando Bisagra se apercebeu das bocas de Malhadinhas, enfurecido:

“ – Sou homem conho!... Sou homem!...

Desapareceu e estávamos nós deitando contas à pachouchada, quando se ouviu grande banzé: o Bisagra fora encontrar a mulher com o Padre Antunes de Lousadela e zupava nos dois como em amassadoira de linho. Foi preciso arrancar das mãos o coroado, senão, matava-o. Mesmo assim, ficou com uma sobrancelha deitada abaixo e mais pingou e lastimável que um dos palhaços que, por folgança de carnaval, se tinham esfaldegado no largo naquela quinta-feira das comadres.”

 

     In “O malhadinhas” de Aquilino Ribeiro

 

 

Ant.Gonç.(antonio)

Pela ruralidade - CLIX(Romarias no passado)

É sabido que a criação da segurança social foi uma instituição pedra fundamental da democracia. Podemos hoje gemer por este ou aquele motivo das coisas por vezes terem falhas. Eu costumo dizer que as pessoas se habituaram a ter tudo de mão beijada. Mas se recuarmos atrás dos anos sessenta, setenta do século passado, constatamos das nossas vivências a miséria social, sobretudo dos mais velhos, pobres e deficientes que se arrastavam sem reforma ou pensão social. Para trás mija a burra, dir-se-á, mas é bom lembrar isto.

Ao ler Aquilino Ribeiro, não me canso de referir este mestre da língua portuguesa, que retracta as gentes da Beira, chamou-me particular atenção o que escreve sobre uma romaria muito conhecida ainda hoje – Senhora da Lapa – no concelho de Sernancelhe. Pois era precisamente o que também acontecia na romaria da terra das minhas raízes – Senhor dos Enfermos, de que aqui já falei, em Macieira, Fornelos, Cinfães e eventualmente em todas as romarias. Vejamos então o que nos descreve o autor:

 

“… Tropicavam azeméis com velhos de capote e chapéu braguês para a nuca, e éguas de albarda com matronas de lenço de seda, peito coberto de oiro e tamanquinha de Viseu no bico do pé. Para aguentar o passo, outras mulheres tinham tirado as chinelas e com elas na mão, a par do sombreiro, ou à cabeça sobre o xaile, desunhavam-se todas tep, tep. E lá seguia tudo a catrapós, no frenesi de meter com sol à festa que o mês de Agosto c´os seus santos ao pescoço não tinha melhor que a Senhora da Lapa, a rica Senhora da Lapinha.

Dali até o povo, em cada linha da rampa, os pobres eram mais que o cisco. Assentes sobre taleigos, os surdos-mudos pareciam marcos de baliza à espera que os distribuíssem pelos campos; já os entrevadinhos tinham avantado para o meio da estrada, sobre os cotos das mãos ou as pernas engatinhadas, algumas secas como cabos de faca, e deitavam a lamúria:

- Ó meus ricos senhores, dai a esmola ao aleijadinho! Olhaide para a minha triste sorte!

Outros, no meio de mondongos, punham ao léu as chagas cancerosas, mais roxas que as do santo Cristo, e charqueiros de putreia onde bichos reboludos, de cinta branca, e a mosca vareja vasculhavam. E berravam que o céu tremia:

- Ó almas caridosas, dai cinco reisinhos ao desinfeliz!

Os ceguinhos de nascença, de olhos vidrados, gemiam uma cantilena lenta e interminável como a noite que os envolvia:

- Pela luz dos vossos olhos dai uma esmola ao ceguinho!

E os entravados e enfezados, de cabeça de alambique e corpo menineiro, em caixas de petroline ou canastras de sardinha, ao lado de matulões barbaçudos, estendiam a mão, a guinchar:

- Oh! Tende dó, deixai uma esmola ao desgraçadinho!

Atrás deles, aqui e além, a dois tanganhos, a panela do badulaque fervia; e, no vapor, passava a olha do pespé rançoso, colhido em porta responsada a Sant`António.

- Por alminha de quem lá tendes, ó meus ricos senhores!

Aquele tinha o carão roído dum cancro e dava vómitos olhá-lo; uma mulher vergava a cabeça debaixo dum lobinho, nascido no pescoço, e tão grande era que parecia trazer às costas uma badana pelada. E a sua voz arremedava o ladrar dos cães:

- Ponde aqui os olhos, ó gente que passais! Por alma de vossos avós, dai a esmolinha!

Jesus! Um homem não tinha pernas nem traseiro, e, fixe sobre uma tábua, parecia enterrado de estaca. Mais além, um monstro, com a boca rasgada até às orelhas e sem nariz e sem dentes, era mais remível que a morte negra. E a fenda rubra gemia:

- Ó santinhos de Nosso Senhor, tende piedade! Dai cinco reisinhos!

- Seja pelo amor de Deus! – murmurou Glorinhas. – Há cada espelho pelo mundo!...

- Levam vida regalada – disse a Zabanda. – Não precisam de trabalhar.

- Deus do céu! Eu antes queria andar de rastos como a cobra!

Estrada fora, o corrilho de lázaros não despegava! E, entre as pernas das bestas e nas saias das mulheres, eram feros e agarradiços como carraças:

- Cinco reisinhos, oh! Dêem cinco reisinhos a quem o não pode ganhar! ...”

 

Em complemento do que atrás está explícito, quero também eu dar o meu testemunho das necessidades que grassavam nos anos da pobreza. Então a quando da missa de sétimo dia de algum graúdo ou remediado era oferecida uma esmola pelos familiares do falecido, no fim do ofício, aos pobres que acorriam piedosa e àvidamente para a receber.

 

  Ant. Gonç. (antonio)