Tempo de desfolhada
Umas das últimas práticas comunitárias, nas aldeias de Arouca – as desfolhadas têm vindo, ao longo dos anos, perdendo todo o encantamento, tal como tantas outras actividades agrícolas.
Consiste em retirar o folhelho às douradas espigas de milho.
Nas tradicionais desfolhadas todas as fainas exigiam grande esforço, o trabalho era árduo e cansativo somente minorado pela ajuda recíproca dos vizinhos, amigos e familiares onde não faltavam animados momentos de convivialidade.
À roda de uma enorme pilha de espigas, em espaçosas eiras, homens, mulheres e crianças, cantando e contando histórias de pasmar, lá iam despindo as maçarocas dos embaraçosos folhelhos. Atiradas para grandes gigos, eram de seguida, alombadas por robustos homens e mulheres, até à última morada – os canastros (espigueiros).
Durante a desfolhada a animação era constante. O aparecimento de espigas de milho vermelho era a
tradição mais emblemática e uma das surpresas que todos esperavam com ansiedade. É que o(a) feliz contemplado(a) teria de distribuir forçosamente beijos e abraços a todos os presentes. Para os mais retraídos a tarefa não era fácil, no entanto os atrevidos, aproveitando-se da sorte e oportunidade única, davam um abraço mais apertadinho e um beijo mais repenicado à sua amada ou amado sem serem chamados à atenção. Alguns espertinhos, ávidos dessa diversão, já traziam de casa as cupidas espigas.
E as surpresas não se faziam esperar. Os serandeiros, qual gente alegre e divertida, lá faziam a sua aparição, sendo entusiasticamente recebidos pelas moçoilas, que roídas de paixão, também viam aí uma oportunidade de extravazarem os seus sentimentos sem que os pais se apercebessem. Mascarados dos pés à cabeça, o objectivo era enganar aqueles que exerciam vigilância acérrima sobre as filhas casadoiras, mantendo-as protegidas de conversados indesejáveis, até ao casório. Nem sempre o disfarce corria bem. Quando descobertos, a pancadaria não se ficava pela metade.
Trabalho executado era hora de lazer. A tão apetecida bucha era posta em comum – broa acabada de sair do forno, azeitonas, figos secos e um bom vinho para aquecer a alma.
Iniciavam-se então os tradicionais jogos relacionados com esta actividade – a sapata e o avião.
Finalmente a remaldeira já se fazia ouvir aproximando-se cada vez mais da eira. Tocadores de concertina, viola e cantadores, faziam a sua entrada triunfal, animando a festa com as suas alegres canções. Os/as dançarinos(as) saltavam para a pista e até os mais velhos, fazendo frente às artroses que rangiam ruidosamente ao som da música, não deixavam de dar o gosto ao pé. No final da festa já com um grão na asa, alguns tentavam cantar ao desafio desafiando o adversário com assuntos inoportunos. Mas tudo ficava bem, pois a resposta não se fazia esperar.
Em casa dos meus avós e vizinhos tive o privilégio de participar em algumas desfolhadas. Não só colaborei como vivenciei algumas das actividades e brincadeiras.
Actualmente, toda esta prática que o Homem criou ao longo de muitos e muitos anos, já não se realiza, pertence infelizmente ao passado. Por isso sinto-me feliz por deixar aqui o meu relato, com conhecimento de causa, e poder contar aos meus vindouros que, antigamente, mormente as dificuldades e privações que os nossos antepassados eram obrigados a enfrentar tinham sempre a capacidade de gerir e contornar todas as situações, com alegria, boa disposição e principalmente muita sabedoria.
Benilde