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Magistério6971

Os autores deste jornal virtual apresentam a todos os visitantes os seus mais cordiais cumprimentos. Será bem-vindo quem vier por bem.

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Olhar o Porto - CCIII(Tripeiro, com muita honra)

Aquilino Ribeiro andou pela Sorbonne onde conheceu grandes mestres. Também, e sobretudo, mergulhou no meio rural, pisando a bosta dos caminhos, retractando o povo como só ele sabia fazer: “só depois de palmilhar as aldeias lucilantes do Norte de Portugal com garotos de calças rachadas no sim senhor e tamancos folclóricos de testeiras amarelas, e colher no pino do Verão a sombra fátua das cornijas senhoriais daqueles solares vetustos, se compreendem os romances de Camilo”. O meio urbano nomeadamente o Porto também foi retratado por este escritor de excelência. Vejamos alguns excertos dos anos cinquenta do século passado, que o autor se lamentava de já terem desaparecido e que tinha presenciado na sua juventude.

“Do Porto da minha mocidade, burgo inteiriço e tão essencialmente mesteiral… já pouco resta. Demoliram o Palácio de Cristal, último reduto dum passado simples, cheio de histórias de caixeiros enamorados pela filha do patrão, tirano de cabelinho na venta, e de guitas com sopas da Maia. Já se não vêem gaiatos malcriados, nem varinas de língua mais vulnerante que estoques. Extinguiram-se duma vez para sempre as vozes shakespearianas contra o desalmado que dançava o saricoté quando elas corriam vergadas debaixo da canastra do peixe: Ó meu filho duma vaca, tu não irás fazer genástega na armação de teu pai!

Sobe-se ainda a rua torta e escalavrada do Bonjardim, mas naquela casa de cornija abacial e reixas verdes já não assoma o rosto especioso da mulher mais linda e brejeira do burgo. Do seu João José – não sei se por despeito maldoso – dizia-se que estava tão enramado que dois cucos a cantar nas duas hastes mais altas se não ouviam um ao outro. (esta graça idiomática quanto a mim é uma, entre muitas, expoente máximo do do léxico de Aquilino).

Na Rua do Loureiro, o diligente marçano puxava o patego de Vila Nova de Famalicão pela aba do paletó para dentro da quitanda. E por todas aquelas ruas sem nome, escorregadias, alumiadas a gás, com um gato preto, de cócoras, à espera como um Buda desabusado, e o infalível namoro do asfalto para a janela de guilhotina, ainda se viam discorrer capas à espanhola, terçadas para o ombro com garbo dom-juanesco, botas à Frederica, possivelmente ectoplasmas camilianos ou encarnações metapsíquicas dos romanceados de S. Miguel de Seide.

Que mais do meu bom velho tempo, pai de vida? Do meu bom velho tempo subsistem também os carros americanos, que saíam maviosamente de manhã da Praça de D. Pedro, Rua de Santo António acima, para regressarem à noite pela Rua das Carmelitas abaixo. Iam fazer o giro da Rua da Constituição, mais pitoresco e longo que a Volta ao Mundo em Oitenta Dias, de Júlio Verne.

Os bons habitantes, sim, quando abriam a boca era para pronunciar os nomes de seus próceres, Junqueiro, Basílio, Bruno, Duarte Leite. De olhos admirativos viam-nos no cenáculo do Camacho, depois desamarrarem dali para a Praça Nova, onde prosseguiam, deambulando até altas horas. … Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saiu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras e sobretudo a pedagogia, impregnadas ainda de miasmas.

O Porto era brioso do que fizera, das suas arrancadas, do seu D. Pedro, do próprio jacobinismo, concordes monárquicos e republicanos na glória do 31 de Janeiro. E, quanto a filáucia, não havia mão, fosse patrícia, vestida de anéis, fosse papuda e grossa do trabalho, que espalmando-se no peito não desse um digno compasso à voz ufana:

- Tripeiro, com muita honra

Nota: Esta parte última sobre a Praça já aqui tinha referido num post

 

     In “Arcas encoiradas” de Aquilino Ribeiro

 

 

Ant.Gonç. (antonio)

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