Um dia radioso que mais parecia de Agosto e segundo as previsões meteorológicas assim vai continuar por mais uns dias. Os corvos marinhos que fogem do norte da Europa , quando o frio aperta, já por cá estão às dezenas nos pilares da ponte do Freixo. Também eles, que não esperavam este tempo tão quente, posicionam-se estáticos a abanar as asas depois de fazerem uns mergulhos à cata de peixe.
Tragam roupas leves, calçado confortável, garrafa de água e não se esqueçam da máquina fotográfica, eram as dicas que vinham no JN a anunciar este passeio à cidade com Germano Silva. Gente mais que muita para seguir as pisadas do mestre já que ouvi-lo não era tão fácil.
Passeio dos Clérigos, campo do olival que agora, depois de muitas transformações, voltou às suas raízes com plantações de seculares oliveiras. Bonito de se ver!...
Campo dos Mártires da pátria em homenagem aos liberais enforcados na praça nova, actual praça da liberdade. Também tem o nome de Cordoaria por ali haver artífices que faziam as cordas para os navios. Uma referência à lendária árvore da forca que era do tempo dos Filipes.
Passagem pelo palácio de cristal que foi destruído para dar lugar ao que hoje existe e que lhe deram o nome de Rosa Mota.
Em direcção à rua D. Pedro V e aí viramos para a Rua dos Moinhos onde existe uma fonte, do caquinho, e o riacho de Vilar. Rua dos Moinhos, como o nome indica, pois era onde se moía o cereal. Podemos dizer, e isto é apenas da nossa lavra, que aqui é um “oásis” rural no meio da cidade.
Já à beira rio, passamos pelo cais das pedras que teve também o nome de cais dos insurrectos e toda a estória desta designação desenvolvida pelo mestre, sempre patente com a pirataria aos barcos.
A extensa comitiva sempre com o acompanhamento do rancho folclórico do Porto que foi fazendo actuações e o seu presidente António Fernandes também um forte conhecedor das coisas do Porto, seguiu até à Praça do Infante D. Henrique, finalizando aí esta passeata cultural à cidade.
O dia D estava prestes a chegar. A miudagem, a que lhe deram o nome de seminaristas, estava ansiosa por chegar às suas terras, ver os familiares, os amigos da escola primária. E também ver as cabras, ovelhas, o cevado, os láparos com criação de caçapos em barda, vacas a lavrar, os carros de mato numa chiadeira infernal, as cantadoiras bem apertadas com os pescazes a roçar em seco no eixo de lódão, (os lavradores gostavam de ouvir e de fazerem ouvir esta chinfrineira, propositadamente não lambuzavam os eixos com sebo), os almargeais, a achamboaria, enfim todas aquelas coisas que eram familiares aos mocinhos do meio rural. Eram as férias grandes que estavam à espreita.
Então na óptica do corpo docente do seminário, reitor, prefeitos, director espiritual, era a altura de preparar os enclausurados para os hipotéticos males do mundo que poderiam encontrar nas suas terras de origem. Essa tarefa cabia normalmente ao director espiritual, bem escanhoado, de sotaina, cabeção e prima tonsura bem desenhada. Num pequeno anfiteatro repleto de juvenis ouvintes, desenvolvia os conselhos, que entendia ele, seriam os mais cristãos. Para que nas suas terras não descambassem tinham ali os seminaristas os alertas dum conselheiro, não fosse alguma valdevina num trocar de olhares fazer descarrilhar o noviço . A plateia ouvia atentamente com a disciplina incutida durante o ano lectivo. Uma ou outra dúvida era esclarecida pelo palestrante, não se coibindo este de abordar os perigos que até a televisão poderia ter. Note-se que este meio audiovisual tinha aparecido há pouco tempo, estávamos nos finais da década de cinquenta do século passado. E chegados aqui há um dos mais desenvoltos que pede licença, levanta-se e pergunta:
-Senhor padre, na minha terra há uma televisão no centro paroquial, posso ver? A resposta, andando sempre à roda com os males do mundo, foi negativa. Mesmo nesse caso deves-te abster, disse o conselheiro.
E agora à distância podemos especular, o que é que a televisão a preto e branco, claro, teria de inconveniente para um seminarista não poder ver! Será que as pivots jornalistas do telejornal já não usariam saia até à barriga da perna, ficaria só pelo joelho e travada com racha atrás?!.... E será que os decotes iam além do manúbrio? E meia calça cor de mel, já não digo preta? E lantejoulas na blusa a darem no olho? E aquele charme apelativo ao ouvinte? Coisas para as quais o seminarista se devia abster de olhares langorosos, para não cair em tentações.
Bem, vamos agora finalmente especular no superlativo. Se o director espiritual naquela altura previsse as cenas quase de sexo ao vivo que actualmente um dos canais generalistas exploram ao serão, dar-lhe-ia uma síncope fatal se não optasse por clausura total longe de qualquer meio de comunicação social.
Além da lavagem ao cérebro atrás referida pelo director espiritual era levada por cada seminarista uma minuta com vários itens para ser entregue e consequentemente anotada pelos párocos das terras dos jovens. Aí se questionava em suma se o seminarista nesse período de férias cumpria com os seus deveres religiosos. Seria depois devolvida ao reitor do seminário. O autor destas linhas, ao tempo, lá ia ter com o abade da terra para avaliar a sua conduta. Era amigo íntimo, o cura, da fogosa trintona a rasar os quarenta, que tinha feito figas ao sacramento do matrimónio, não era seresma muito menos maninha entenda-se, roliça sim e a dar no olho, de porte gostoso, Miquinhas mamuda (não que fosse amojuda se bem que também não era tábua rasa. Era apelido que tinha herdado da progenitora, essa sim abonada em dotes carnais frontais). Era aquilo que se pode dizer mulher bem feita, nos olhares fuzilantes de alguns campónios urbanizados, atiradiços. Não passava despercebida a muitos paroquianos malandrecos quanto mais ao abade quarentão que se enfurecia de ciumeiras, donde talvez o fatacaz que tinha por ela?!... Mulher da Igreja, tinha sempre o altar florido num brinquinho e então o nicho de Santo António casamenteiro, com dois castiçais reluzentes, sempre florido em boa frescura ora com dálias, ora com cravos brancos. Os paramentos nos gavetões do móvel corrediço de castanho velho na sacristia, bem espelhados, ela fazia questão do abade na santa missa dominical e nos lausperene estar bem afiambrado. Mas era sobretudo nas missas solenes com a presença do bispo, cónego e arcipreste e o coro a cantar o Agnus Dei e o Te Deum que o pároco, vaidoso como era, gostava de se apresentar nos trinques. Durante a semana, era um ver se te avias, um engrolador de missas. Dizia-se na paróquia e redondezas que o padre tinha mandado às malvas os votos de castidade professados quando tinha sido ordenado, no entanto dava conselhos aos paroquianos, que se ajoelhavam no confessionário, persignando-se, para não lambiscarem fora do arco matrimonial. Segundo as más-línguas falava-se em mancebia (eu nunca vi nada mas havia quem espreitasse pelo buraco da fechadura), poderiam ser ou não deslises clericais em piso tão escorregadio, transversais no tempo que já Aquilino, Eça, Camilo e outros esgravataram. Diz-se que lautas jantaradas e boas camas não eram enjeitadas por franjas clericais. Mas isso não eram contas do meu rosário, só me interessava que o abade não desse deste seminarista más informações para o seminário.
O repouso final destes utensílios após muitos anos de servidão a mãos humanas. Se alguns ainda têm irmãos na actualidade com funções idênticas, outros foram totalmente postos de lado pela modernidade.
Uns e outros são memórias que nos fazem olhar para trás e recordar as mãos calejadas dos meus pais, avós, bisavós e por aí adiante.
Fica então aqui, conforme tinha prometido, mais uma amostra do acervo das minhas velharias.
É ponto assente que os meios rurais estão aceleradamente a ficar desertificados, menos gente, menos animais pesados, menos agricultura. Para agravar a situação o envelhecimento dos residentes é notório não havendo reposição social com nascimentos. Aquilino Ribeiro escreveu em 1953 sobre as Beiras “toda a vasta região está a despovoar-se… É o êxodo caudaloso, porventura inelutável, mas com os seus riscos”. Referia-se Aquilino à emigração para o Brasil, mas a natalidade ainda ia equilibrando a balança demográfica, mas agora!...Depois há ainda vox populi dizendo que o rendimento social de inserção, que nalguns casos é justificável, noutros veio contribuir na moleza de alguns ainda capazes de vergar o fio. O JN dizia que se não fossem os emigrantes dos países do leste muitas uvas ficariam por colher na região do Douro. Assim se vê a que estado chegou o nosso país.
Os caminhos rurais da terra das minhas raízes, na freguesia de Fornelos (Cinfães), refiro-me aos virgens, não àqueles que já levaram calçada à portuguesa ou paralelos junto ao casario, são memórias históricas que me são caras e que estão muito desprezados. Novas acessibilidades deixaram-nos esquecidos onde todo o tipo de vegetação cresce, inviabilizando-os. Tenho uma pequena belga de monte no sítio denominado Chão de Lamas, cerca de 700 m de altitude, longe das tais novas acessibilidades, onde já não ia há vários anos. Meti pés ao caminho que conhecia bem do passado, mas foram tantas as barreiras de vegetação selvagem que só com a minha perseverança a corta mato por fora do tal caminho, totalmente intransitável com carvalheiras, zangarinheiros, estevas, codessos, urzes, giestas, mato arnal, silvados e que mais direi eu, cheguei ao destino que me propunha. É uma zona de forte matagal, sem árvores de porte, cujo fruto material dessa belga de monte é zero, ou antes, é negativo pois há o encargo da contribuição IMI.
As fundas regueiras nalguns troços desse caminho, cavadas em afloramentos rochosos pelos rodados de carros de mato, lenha ou pedra, no passado, fazem-me parar e ir ao encontro duma infinidade de gerações que por ali calcorrearam!... São memórias silenciosas de vida dos nossos antepassados. Quando vamos ao palácio ducal de Vila Viçosa e nos dizem que aquele grande tapete persa tem cerca de 500 anos ficamos de boca aberta. E sobre os caminhos rurais qual é o nosso sentimento? É enorme.