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Magistério6971

Os autores deste jornal virtual apresentam a todos os visitantes os seus mais cordiais cumprimentos. Será bem-vindo quem vier por bem.

Magistério6971

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Memórias

O criminoso volta sempre ao local do crime, ou não voltes ao local onde foste feliz, são aforismas com aparência contraditória que podem aplicar-se com mais ou menos acerto.

O puto, cujos progenitores entenderam que ele se devia preparar para mais tarde usar cabeção, fato preto, eventualmente coroa, ler todos os dias o breviário, ou seria apenas para não o deixar ficar lá na terra ir com as ovelhas para o monte?  Pensaram então em despachá-lo para o seminário de Vila Viçosa. O petiz acabado de sair da primária sabia na ponta da língua e sobrava-lhe tempo, as linhas, ramais, estações e talvez apeadeiros dos caminhos-de-ferro de Portugal continental e de além-mar. Não lhe foi difícil ir do Porto à vila calipolense numa viagem que teve de utilizar várias linhas do pouca-terra, algumas já desactivadas. Mas já antes se tinha levantado de madrugada para apanhar a carreira do Escamarão a ponto de chegar à cidade cerca das sete da manhã para apanhar o comboio-correio para Lisboa, mudando no Entroncamento.

O puto que não tinha vocação para os rituais que lhe estavam a enraizar na cachimónia como foi notório, saltou fora da carroça, ou foi aconselhado. Seguiu outro rumo com mais luminosidade, fora das amarras duma disciplina de enclausura, liberto dos males do mundo que lhe fartavam de emprenhar os ouvidos os padres prefeitos, que tinham tanto de santaneiros como de rígidos.

Os anos passaram, décadas em catadupa, e agora voltando ao início do post, o puto crescido foi até ao edifício onde não chegou a gastar meias solas, hoje transformado numa excelente pousada, onde funcionou o seminário. E aí as memórias foram saltando, as camaratas, hoje quartos, o refeitório o mesmo espaço mas modernizado, o poço, a arcaria dos claustros com colunatas de mármore. O edifício que também tinha sido no passado longínquo um convento, hoje pousada D. João IV explorada pelo grupo Pestanas, é pertença da Casa de Bragança.

O puto amadurecido fez um esforço para não se comover com as suas memórias, boas ou más pouco interessa, são memórias e despistou-as com uma visita ao palácio ducal, mesmo ali ao lado, um ex-libris de Vila Viçosa. A dinastia de Bragança ali está representada. D. Carlos, o rei pintor exímio, caçador e pesquisador oceanográfo!... E a pergunta que  surge, como lhe sobrou tempo para a governação régia?!... Há! Seria João Franco que lhe cuidava dos assuntos do reino.

Ficam  então aqui uns salpicos de uma “manhã submersa” que bem descreve Virgílio Ferreira sobre o funcionamento dos seminários.

 

   (na imagem a actual pousada D. JoãoIV, onde funcionou o seminário, em V. Viçosa)

 

   Ant. Gonç. (antonio)

 

Pela ruralidade - CLIII(estória verdadeira)

Todos nós sabemos, principalmente os mais maduros, que até à chegada do automóvel em força, ir a pé a grandes distâncias se fazia com uma perna às costas, passe a metáfora eufemística. Hoje também se fazem grandes caminhadas nomeadamente a Fátima ou a Santiago de Compostela, mas são normalmente feitas com amor sofrido. Não é destas a que me quero referir mas àquelas que os nossos antepassados faziam com cara alegre, quer fossem à feira das colheitas a Arouca, à romaria da Santa Eufémia em Castelo de Paiva ou de quinze em quinze dias para ir à feira de Nespereira ou de Cinfães.

Vamos então à espinha dorsal desta estória verídica. Aqui na terra que adoptei como residência, Valbom, já há bastantes anos, há um senhor já de vetusta idade que tem um estabelecimento de venda de bicicletas e seus acessórios. Actualmente são os filhos que estão à frente do negócio. O senhor veterano é natural da freguesia de Grilo que pertence ao concelho de Baião. Pois contou-me que seu pai,  in illo tempore, meteu no bolso um naco de broa e uma lasca de bacalhau, fazendo-se acompanhar duma racha de lódão, apanágio de bom feirante, e foi a penantes de Grilo à feira de Nespereira comprar uma vitela de raça arouquesa para criar, e assim aconteceu. Naquela altura deviam ser  mais, mas muito mais de duas horas de caminho para cada lado, não para menos. Quando já estava mais de meio caminho andado vindo da feira com a vitelinha à soga, que tinha comprado, apareceu-lhe um lavrador emproado mas de falinhas mansas, sabidola quanto basta, mediu o animal de alto a baixo e de frente para trás, fez uma oferta de compra, ganhadora para o Sr. Valente que ficou hesitante, mas perante ganho que lhe pareceu gordo fechou o negócio. Veio depois a saber que era o padre da paróquia de Ancede, um sovina de primeira, com a escola toda, tinha amealhado bom pecúlio com as côngruas dos paroquianos, serviços da igreja pela tabela máxima, bem como aulas de religião e moral que dava num colégio e ainda a mais valia da úbere quinta de boa semeadura e vinha de enforcado, que tinha comprado por dez reis de mel coado a um brasileiro falido. Ainda segundo a voz do povo, tinha na cidade do Porto um correr de ilhas na Rua de S. Vítor que no conjunto lhe davam bom granjeio. Mazombo quando passava um raspanço a um paroquiano, mas hipocritamente sorrateiro quando queria surripiar com falinhas odoríferas de manjericão, o melhor presunto de um fumeiro para as comezainas de farta abade que fazia amiúde com o arcipreste, os curas das redondezas e por vezes o latagão cónego da Sé de Lamego que era um ver se te avias, também um bom garfo, andava a cada passo nas tainadas quando o bispo lhe dava folga. Era, o cónego, pregador de serviço nas romarias de Ribadouro com o seu draconiano vozeirão, tronante nos altifalantes das missas campais, para atemorizar os maloios com os males do mundo, o inferno e o diabo de forcado em riste a acagaçar os cristãos não praticantes.

 

Quando o senhor Valente chegou a casa já noite dentro, a mulher que o esperava ansiosa para ver a toirinha, até tinha feito uma ceia melhorada,  a corte bem acamada com mato molarinho para a noviça e na manjedoura ferrã viçosa, ficou entristecida apesar do ganho que o marido tinha obtido na transacção. Sofredora ao saber das performances da vitela que o nosso homem lhe botou, bem desquitada, andadeira, com bons quartos traseiros, gaitas a despontar e boa ascendência genética de boi de cobrição ganhador das chegas da feira da Malhada no Montemuro. Mas com algum desafogo quando soube que tinha sido o sr. padre de Ancede o adquirente da bezerrinha, não pela saúde espiritual do cura que não era coisa que se recomendasse, mas sim por tradição de carga religiosa que sempre floresceu no meio rural.

Moral da estória, nem tudo o que reluz é oiro, neste caso para a mulher do Sr. Valente.

 

  Ant. Gonç.(antonio)

Olhar o Porto - CXCVI(Arcas encoiradas II)

Já por aqui falei na “Universidade” que existiu, segundo Aquilino Ribeiro na Praça Nova, actual Praça da Liberdade. Desconhecia que vinha desenvolvida no livro que acabei de ler “Arcas encoiradas” do citado autor. Vamos então ver o pensamento de Aquilino:

“As coisas no Porto falavam todas, precisamente porque os homens eram muito cerrados e metidos consigo. Vão lá hoje procurar esses Cássios que encontrarão tribunos de verbo largo e inesgotável!

Os bons habitantes, sim, quando abriam a boca eram para pronunciar os nomes dos seus próceres, Junqueiro, Basílio, Bruno, Duarte Leite. De olhos admirativos viam-nos no cenáculo do Camacho, depois desamarrarem dali para a Praça Nova, onde prosseguiam, deambulando até altas horas, quer nas noites serenas, quer sob o gume cortante dos códãos, o debate animado ou o colóquio vicioso. Tornaram-se proverbiais, como se fossem vertidos em bronze à semelhança do Imperador, seus vultos quotidianos: Junqueiro enterrado nas duas voltas do cache-nez  aos quadradinhos, pouco menos que manta zamorana, a barba hebraica perlada de molinha; os outros de barbas ou sem elas, gesto largo mas com o seu ritmo, voz inspirada  as mais das vezes, versando com a roda, tão atenta como questionadora, os infinitos problemas deste mundo e do outro. Entre eles, os que diziam respeito à vida e história da Nação ou que implicassem com a ética da liberdade.

Esta Praça é que foi a verdadeira Universidade, não apenas do Porto, mas de Portugal. Dali saíu a geração que contribuiu em boa parte para fazer a República e que arejou as letras e sobretudo a pedagogia, impregnadas ainda de miasmas. Estou em dizer que, se se formaram ali homens cujo nome apenas fulgurou meteoricamente na baça atmosfera intelectual, outros o insculpiram para todo o sempre no pátrio panteão: Teixeira Rego, Pádua Correia, Teixeira de Pascoais, Leonardo Coimbra, José Caldas, Ângelo Ribeiro, António Patrício, Abel Salazar, Justino de Montalvão, Rómulo de Oliveira, Newton de Macedo, etc., etc., para não falar senão nos falecidos.

Os mestres da Praça Nova tinham a elegância extrema da isenção como Sócrates. E se ensinavam a ciência de governar e faziam a crítica de governantes e governados por todos os processos da inteligência, inclusive a anedota e a sátira, desconheciam a arte de escalar o poder e caluniar. Criaram bons discípulos e maus grimpadores.

Poetas e sociólogos, estavam integrados no burgo como o Bolhão. Junqueiro era ecumenicamente português. O gentio apreciava-o menos devido a esta falta original. Andavam no ar os nomes de Belchior e do Ferramenta, que tinham embarcado no aeróstato, máquina assombrosa e redonda como uma caçoila de Vale de Ladrões, em que muitos sonhavam uma dirigibilidade triunfante. Tanto subiu, tanto subiu, julgaram muitos, que se perdeu nos abismos do céu. O Porto celebrava também o bacalhau à Gomes de Sá, outro motivo do seu orgulho.

O Porto era brioso do que fizera, das suas arrancadas, do seu D. Pedro, do próprio jacobinismo, concordes monárquicos e republicanos na glória do 31 de Janeiro. E, quanto a filáucia, não havia mão, fosse patrícia, vestida de anéis, fosse papuda e grossa do trabalho, que espalmando-se no peito não desse um digno compasso à voz ufana:

- Tripeiro, com muita honra!”

 

 

     Ant.Gonç. (antonio)

Pela ruralidade - CLII(Arcas encoiradas)

Como no mês passado fiz anos, é costumeira, embora eu não aprove na totalidade, oferecer-se uma prenda. Pessoa mais chegada da família assim fez. Vai daí como sabe que eu gosto de mastigar a sabedoria portuense, que é muita, de Germano Silva, surpreendeu-me com o seu último livro – Caminhar pelo Porto. Um outro familiar teve igual sintonia, então fui à Bertrand e troquei este último por “Arcas encoiradas” de Aquilino Ribeiro, que ando paulatinamente a esfolhear. Tenho a sorte de ter em casa um bom dicionário e um computador à mão de semear. Dá uma trabalheira desembaraçar-me  do português de Aquilino, mas é compensador enfronhar-me na ruralidade que tão bem retracta. Vou ainda a meio da jornada mas deixo  aqui alguns curiosos desenvolvimentos :

 

Aquilino citando Ramalho Ortigão sobre o que este disse de Eça de Queirós que ignorava o que era o mel. E adianta que quando Eça foi de visita a S. Miguel de Seide lhe foi oferecido mel por D. Ana Plácido, retorquiu:

- O quê, mel? Mas há disto no Minho? Julguei que mel era alimento imaginário dos poetas, que só existia no monte Himeto!

E a sua voz, que me dizem ser mesurada, de veludo, com um breve acento nasal propício à dúvida e ironia, teria mergulhado de espanto os convivas, menos Camilo, que não era tolo nenhum, disse Aquilino. E adianta com mais uma estocada a Eça: “E é de conceber que Eça, o mago, o civilizado, ignorasse o que era o mel! O certo é que o dito correu à superfície da estupidez nacional como a cortiça na corrente de um rio: Eça não sabia o que era mel!”

O mel ia a todas as mesas e entrava em todos os récipes na qualidade de detersivo, digestivo, atenuante, resolutivo e peitoral. Era princípio obrigatório no cozimento sacro, no alexifármaco de provado êxito contra febres malignas, nas emulsões, arrobes, oximéis, hidroméis, triagas, mitridatos, filónios, electuários e mais preparados da terapêutica químico-galénica, diz Aquilino.

 

Noutra passagem das “Arcas encoiradas”  Aquilino retrata as Beiras , este livro foi escrito em 1953:

“Toda a vasta região mencionada está a despovoar-se. A população válida, com abrir-se a válvula à emigração pela carta de chamada, escapa-se atropeladamente para o Brasil. É o êxodo caudaloso, porventura inlutável, mas com os seus riscos. Por outra, além dos que vão para o Brasil, há os que todos os anos desertam para o Alentejo, onde ao menos lhes estão garantidas as migas e o rabo de carapau. Os campos da montanha ficam por arrotear, outros mal arroteados pelos velhos e as mulheres…”

 

Sobre a emigração das aves diz:

“As andorinhas, a quem chamam nas aldeias pitas de Nossa Senhora, emigram cedo. Ao mesmo tempo que a toutinegra. O campónio, que é um animal pouco sensível à poesia das coisas, pese embora aos manes de Júlio Dinis, nem as vê despedir. Todos os seus olhares são pouco para os úberes das vacas e o pendão dos milhos.”

“Desapareceram os marantéus, os petos- reais, as poupas, as gralhas, que são a tafularia dos céus, e o patusco é que ninguém os viu partir. Se estas aves retiram em bandos maciços ou por turmas, outras esgueiram-se à francesa, uma a uma, sem dizer por aqui me vou. O cuco será o primeiro, é de prever dado o seu carácter de solitário e egoísta. Tão pouco se verá partir a torda, o verdelhão, a milheira, o tanjasno.”

 

 

     Ant.Gonç. (antonio)