As pedras da calçada falavam com o corrupio de gente, uns de tamancos, outros de chancas e os mais endinheirados que eram poucos, de botas cardadas. Todos com uma ferramenta, sachola, engaço, gadanho às costas, ou um podão na mão ou a foicinha no ombro. Era um ver de gente que ia ou vinha dos andurriais e todos sabiam o que fulano ou sicrano faziam. A vida tinha um sentido comunitário, quase familiar, em que todos se conheciam e entrosavam.
Estou a falar da terra das minhas raízes que assim era quando este veterano era menino e moço, mais tarde fez-se homem, que por lá andava a ajudar nos trabalhos agrícolas, e também aos grilos e aos ninhos mas também pela borda dos caminhos às amoras e morangos. E o meu pai dizia-me perante a minha titubeação no futuro:
- Estuda para não ficares na “laboira”.
Comecei este arrazoado a falar num tempo que já não o é. Agora quando vou à terra, e faço-o muitas vezes, sinto um vazio que me deixa muito pensativo. A desertificação do meio rural está galopante, agravando-se ano após ano. Pela lei natural da vida os mais velhos vão desaparecendo sem que haja reposição humana.
Retrocedendo ao tempo do alvor do meu entendimento, veio-me à memória uma das tradições católicas que não se esvaeceu no tempo- o culto à Sagrada Família.
Na paróquia das minhas origens, apesar da devoção remontar aos primórdios da Igreja, essa devoção ainda se mantém com muita religiosidade.
É um pequeno oratório portátil em madeira, com o seu interior forrado em tecido, com duas portas em vidro, deixando ver S. José, Maria e o Menino Jesus, símbolos da família cristã.
Em casa dos meus avós, acolhia-se a Sagrada Família, ficando exposta em local visível, em cima de uma cómoda alta, devidamente engalanada com uma linda toalha em linho e renda. À noite acendia-se uma lamparina alimentada a azeite e, era nesse local, que a família se reunia para rezar o terço. Após as orações depositava-se a esmola numa gavetinha bem fechada, para no dia seguinte seguir para outra família.
Era uma presença de Deus que muito contribuía para a paz de espírito,que ajudava cada família a levar avante a vida com mais fé e esperança.
Essa oratória deveria permanecer em cada casa 24h, mas esta cláusula raramente era cumprida.
Competia quase sempre a mim a entrega à próxima família, incumbência que acatava com muita mágoa.
Há dias, foi com muita surpresa minha, que ao visitar uma prima, revi a pequena caixinha. Voltei minutos ao passado, reascendendo memórias praticamente esquecidas, foi um despertar de um turbilhão de emoções.Vi uma menina com uns grandes olhos deslumbrados,visualizando minuciosamente aquela caixinha mágica,abrindo e fechando as portinhas, com muita curiosidade. Não me lembro de rezar.
Reviver o passado é sempre uma grande felicidade, sinal que, ainda estamos presentes, num presente tão dúbio.
Fiquem bem
Benilde
Tive conhecimento que, presentemente, a gavetinha das esmolas chega ao seu destino, a maioria das vezes, surripiada. E esta hein!!!
Estimados colegas Fui autorizado pela comissão organizadora do evento comemorativo do 46.º aniversário do nosso curso a apresentar o local onde vai ser realizado o repasto, no dia 27 de Maio de 2017.
A comissão organizadora está empenhadíssima e vai tudo correr bem, tenho a certeza. Boa sorte.